ARTE-CULTURA E A VIDA NA RUA

 

A inclusão da arte na atenção aos que vivem na rua não se faz só com a palavra ou com o desejo. É preciso que esta palavra seja acompanhada de uma ação inclusiva.

 

“A forma como os artistas são tratados variam muito, pois no Brasil faltam apoio e subsídios às pessoas que trabalham com arte, principalmente aquelas que estão vivendo nas ruas ou centros de acolhida”.

 

A arte está intrinsicamente relacionada à cultura e ao contexto onde os artistas estão vivendo, pois juntas auxiliam a construção da identidade de um povo, de uma nação, assim a cultura influencia a arte, e esta, por sua vez influencia a cultura. Existem diferentes formas de manifestações artísticas e todas elas auxiliam a manutenção da saúde mental, principalmente em períodos caóticos como o que estamos vivendo. Entretanto, a forma como os artistas são tratados variam muito, pois no Brasil faltam apoio e subsídios às pessoas que trabalham com arte, principalmente aquelas que estão vivendo nas ruas ou centros de acolhida. Neste artigo, pretendo apresentar um dia na vida de minha experiência trabalhando com artista visual, itinerante e  desenhista.

Produzir arte nas ruas da cidade de São Paulo traz muitos desafios. Dependendo do dia e local, produzir algum tipo de arte manual ou não, se transforma numa maratona. Às vezes, mesmo que planejando e tendo os materiais disponíveis necessários, nem sempre se consegue atingir os objetivos. Por isso, há os artesãos informais que circulam com alguns de seus trabalhos nas mãos oferecendo a transeuntes, ou nas proximidades das estações de metrô ou trens, porque não podem oferecer perto de lojas e shoppings “por atrapalhar o movimento”!

Estão sumindo também, os retratistas, que na sua maioria aderiram às encomendas via WhatsApp pelo transtorno com as fiscalizações e aqueles itinerantes, ou seja, os que estão passando e mudando sempre, não conseguem, na maioria das cidades e com algumas exceções em cidades turísticas, se regularizar, pois dependem das convenções e regras locais.  De modo que, quem tem um local para realizar seus trabalhos, tudo bem!!, mas quem não tem, fica refém de locais como pensões “insalubres” e fica praticamente impossibilitado de trabalhar, por não ter local minimamente apropriado, por exemplo uma mesa e uma cadeira onde colocar seus materiais. Estes são locais apenas para “pernoitar mesmo”, sem nenhuma estrutura. Quando se consegue, enfrentam várias dificuldades, pois os locais além de superlotados, possuem uma diversidade grande de pessoas dentre elas aquelas que consomem álcool e/ou outras substâncias e com frequência o barulho é muito grande. Ou seja, os artistas de rua não possuem local adequado de trabalho para produzir e/ou criar suas produções.

Na tentativa de lidar com isso, sobram as bibliotecas e centros culturais públicos, porém é necessária muita atenção aos horários de funcionamento, porque se chegar muito tarde e os lugares já estiverem devidamente ocupados, não haverá como realizar o trabalho. Quando isso ocorre é preciso manter a calma, ler ou folhear periódicos e ou revistas para lidar com a ansiedade de criar um trabalho, seguida de um sentimento de frustração, porque o tempo passa rápido e de novo não foi possível desenvolver o trabalho de arte anteriormente planejado, que já está na cabeça.

E quando chove? Os locais públicos ficam cheios, aí tem aquele lugarzinho seu preferido que, por mais cedo que você chegue, já tem alguém lá esperando com aquele sorriso irônico sinalizando que você terá que procurar outro lugar.

Aí se inicia outra maratona: procurar espaços oferecidos por algumas Organizações da Sociedade Civil – OSC´s, que dizem ter espaços para que possa desenvolver os trabalhos, o que acaba por vez não sendo possível, porque na sua maioria,  a demanda de procura nesses espaços locais é por alimentação, o que nos faz sentir um “estranho no ninho”, enfrentar vários olhares de reprovação e o aparente desinteresse dos funcionários, pois é como se você pelo fato de trabalhar com arte, “quer  aparecer, ser mais o que outros frequentadores”;  outras vezes o próprio local começa a solicitar encomendas de trabalhos gratuitos em troca do local que está sendo disponibilizado.

Quanto aos trabalhos expositivos, aqueles para os quais há necessidade de um local fixo, mais estratégias são necessárias, frequentar o local de sanitário, pois o comércio somente permite a seus clientes utilizem, entendimentos com alguém “dono do local” é mais do que necessário e isso depende deste desenvolver empatia com você que expõe para poder vender no local. Sem dizer também que, quando se sai no caso para fazer uso de sanitário é num vatp´t vupt´ e com um olho no “gato e outro no rato”, porque frequentemente corre-se o risco de quando retornar, algum trabalho seu ou material tenha sido subtraído. Aí quase vai chegando o fim do dia, vai passando a chuva, você quase não produziu, não pegou nenhuma encomenda, não fez nenhuma venda, terá que mudar a estratégia, para não ficar no prejuízo total e ficar com alguma verba, opta-se por pernoitar num abrigo e ou centro de acolhida. Outra maratona: liga para o número orientado, solicita uma vaga e aguardar no local indicado até chegar o veículo, este demora porque não há um horário certo ou aproximado até que arrumem uma vaga em um centro de acolhida e ou abrigo que nem sempre é perto de onde você está trabalhando, ou tenha compromisso no dia seguinte. Até que chegue no abrigo indicado, aguarda o atendimento de algum funcionário para a identificação, que é comum proferir “você não aparenta ser, ou ter o perfil de pessoas que atendemos, no equipamento”.  Em seguida, faz uma breve e superficial entrevista junto ao preenchimento de uma ficha; quando me identifico como artista ou artesão, com desdém ou com um sorriso irônico, pede para ver algum dos meus trabalhos, mostro o portfólio, ele olha, se espanta (tentando disfarçar), balança a cabeça fazendo sinal de sim, e pergunta o valor de um trabalho. Quando eu respondo, ele refere que “gostou de um em especial”, neste instante respondo que não posso ceder o mesmo, porque além de não ter amostra, não tenho o que vender no dia seguinte, se doar o trabalho, não tem recurso para comprar os materiais para continuar trabalhando. Geralmente em alguns equipamentos alguns funcionários não aceitam bem uma resposta dessas, ficam reticentes, dificultam a vaga mesmo que seja de um pernoite, proferindo “que nos falta humildade” ou “se você fosse realmente bom, não estaria aqui”! Claro!  Nem sempre é assim, mas isso acontece e faz parte da maratona. Aí no caso você pega suas coisas, volta para região central da cidade com aquele dilema comum entre alguns artistas e artesãos: ou sai para procurar papelão, arranjar uma coberta e dormir na rua para poupar o dinheiro que precisa para o dia seguinte, ou gasta o que tem para dormir naquelas pensões coletivas e insalubres de vagas.

Amanhã é outro dia e espero que o sol surja logo pela manhã, que seguirei para uma biblioteca, mesmo com a roupa úmida secando no corpo, com “cheiro de cachorro molhado”. A vida de artista de rua é uma maratona diária.

Sobre o Autor:

*João Carlos Correa: Artista Visual, Desenhista-Ilustrador, Retratista, Arte-finalista (Autodidata), Artista Itinerante. Ex-Agente Comunitário de Saúde atendendo população em situação de rua. Publicação com a colaboração da parceira Eroy Silva. Fonte: Intercambiantes. Fotos: Arquivo Pessoal/Redes sociais/Divulgação.

Recordando…

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